domingo, 14 de outubro de 2012

Resenha: Os Enamoramentos, Javier Marías.


“O que aconteceu é o de menos. É um romance, e o que acontece neles não tem importância, a gente esquece, uma vez terminados. O interessante são as possibilidades e ideias que nos inoculam e trazem através de seus casos imaginários (...)”

Essa afirmação, aparentemente estranha, se prova absolutamente real ao ler “Os Enamoramentos”, de Javier Marías. Já li vários livros dele, de muitos não lembro a história, mas a sensação depois de cada um é a mesma: inquietação, curiosidade, vontade de ler mais, de estudar mais, de viver mais. Claro que histórias são importantes num romance, e em “Os Enamoramentos” temos vários elementos de uma grande história: um casal aparentemente perfeito, uma morte súbita e violenta, um personagem que não é o que parece à primeira vista. Porém, o que me prendeu ao livro foi mais do que isso. Foi o que senti durante e depois da leitura. Porque há livros que nos fazem esquecer a vida, viajar, fantasiar. E há livros, como “Os Enamoramentos”, que nos fazem ler nossas próprias vidas, reconhecer nossos sentimentos, descobrir um pouco mais sobre quem somos, e sentir que não estamos sozinhos. Afinal, quem é que nunca se apaixonou? Ou melhor, se enamorou, que segundo Javier são coisas diferentes. O enamoramento do qual ele fala no livro é “(...) sentir um fraco, verdadeiro fraco por alguém, e que esse alguém produza em nós essa fraqueza, que nos torne fracos. Isso é o determinante, que nos impeça de ser objetivos e nos desarme perpetuamente e nos leve a nos render em todas as contendas (...)”.
Se você já sentiu isso, certamente vai se identificar com as “burrices” que Javier descreve, aquelas que só fazemos quando estamos desarmados - e desamados. Os questionamentos e afirmações que ele faz acerca do caráter mutável dos nossos sentimentos, e da impossibilidade de averiguar com acuidade as palavras e intenções do outro, traduzem algo que faz parte do nosso dia a dia sem que nos demos conta, mas basta ele falar para que percebamos como aquilo é real.          
Li a história de María, Miguel, Luisa e Javier traçando paralelos com a minha própria história o tempo inteiro. E é isso, mais do que qualquer coisa, que torna “Os Enamoramentos” um grande livro.  É um livro que é capaz de contar uma história que não é só aquela que está escrita, mas é mais ainda aquela que lemos, e aquela que se inscreve em nós. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Pai


Pai,

      eu deitei, abri o livro, mas não li uma palavra. Não li porque essa outra palavra me interrompeu: pai. E no instante que ela surgiu lágrimas brotaram, lembranças romperam barreiras, e a represa arrebentou. E acho que preciso escoar toda água, toda mágoa, todas as letras que crio tentando cercar o que sempre escapa: a falta.
      Você me faz falta. A sua ausência me marcou, me marca, a cada dia. Hoje tenho o dobro da idade que tinha quando você morreu. Isso significa que já vivi metade da minha vida sem você. Eu gostaria que você tivesse estado ao meu lado nos “grandes momentos”: vestibular, formatura, casamento, separação. Mas não é nessas horas que dói mais. A sua ausência pesa mesmo é em momentos simples. Quando ouço Martinho da Vila e lembro-me da amizade de vocês. Quando, no carnaval, a Portela desfila e lembro-me do chaveiro de metal com a águia azul que você sempre usava. Quando o Fluminense foi campeão brasileiro e pensei que a última vez que isso tinha acontecido eu era uma menininha que você carregava nos ombros e levava aos jogos no Maracanã. E, assim, sem motivo, quando abro um livro e ouço a palavra: pai. E sinto que preciso te escrever. É isso, agora eu escrevo, pai. Os livros que você tanto adorava tornaram-se meus companheiros ainda mais necessários desde que você se foi.
      Comecei essa carta com uma necessidade avassaladora de escrever sem saber como ou o que escrever. Agora acho que essas letras são, como tudo que escrevo, tentativa de dar conta do que o pensamento não consegue. Tentativa de construir uma borda que seja na tua falta, que é a minha falta, que é o vazio e a solidão de todo e qualquer sujeito. E vivo dividida entre buscar a solidão e fugir dela. Porque a solidão dói, mas estar com o outro me assusta, pai. Eu tenho sempre muito medo de perder mais alguém como perdi você. Cada vez que alguém sai da minha vida eu sinto tua morte de novo. E dói, muito, então eu me poupo, afrouxo o laço, solto a corda, abro a mão. A dor da solidão é sempre a mesma. A dor da perda é sempre nova, cada perda re-significa todas as anteriores. Fugir do novo sempre me parece a melhor opção. Mas ao mesmo tempo não quero ficar sozinha. Acho que também por isso escrevo essas palavras.
      Eu preciso da tua mão, pai. Preciso que você me ensine que a tua morte não te encerrou em mim. Que você continua aqui. Que os laços, quando são reais, não se desfazem com a ausência, nem com a morte. O laço que liga uma pessoa à outra é o mesmo que liga essas duas pessoas ao mundo. Diz-me então, pai, com essas letras que eu escrevo, mas que vieram de você, que a solidão existe, mas que ela não é tudo. Que os laços contornam, amarram, seguram. Que nascemos e morremos sós, mas que as palavras já nos diziam antes de nascermos e continuarão nos escrevendo depois que morrermos. E que é por isso que escrevo. Éque, quando escrevo, não estou só. 

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Vestida de Sentimentos

Acordei, como tantos outros dias, envolta em sonhos e coberta de esperança. Mas, ao levantar, percebi que eles não me aqueciam como antes. Estava de pé, com frio, te olhando deitado, a respiração ritmada, uma expressão tranquila no rosto. Invejei aquela tranquilidade, desde a noite em que deitei na sua cama pela primeira vez nunca mais a senti. O vento gelado que entrava pela fresta entre a porta e o chão trouxe culpa. Peguei-a, embrulhei-a com uma manta de mágoa e pus aos teus pés. Afinal, eu não tinha dúvida: a culpa da minha dor era sua. Suspirei, sentindo a decisão que já tinha tomado. Olhei-te uma última vez. Vesti-me de despedida, te entreguei parte da minha alma partida, e fui. 

Do que não se sabe

Você me lê e acha que sabe o que sinto. Que entende o que eu digo, que consegue desvendar o silêncio que preenche as entrelinhas. 

Você me lê e acha que sabe da minha vida porque vez ou outra digo onde estive, o que li, ou que peça assisti. 

Você me lê e acha que sabe quem eu sou porque escrevo na primeira pessoa e as situações parecem reais. 

Você me lê e acha que sabe o que nem eu sei. Quando escrevo não sei o que sinto, não sei que vida levo, que vida evito, e não faço ideia de quem sou.

Você me lê e acha que sabe, eu escrevo e acho que não sei. E é por isso que continuamos aqui.

sábado, 19 de maio de 2012

De príncipes e heróis


E aí você chegou. Ou melhor, eu cheguei. Você já estava lá. Eu que andava em círculos sem parar, e você que me via e pensava, Será que ela não fica tonta nunca? Eu ficava. Mas já não sabia mais como era viver sem estar tonta, com o medo constante de que o chão desaparecesse. Até que um dia, nem sei muito bem como, eu dei um passo pro lado. Saí do círculo, e o chão continuou lá. Era estranho estar parada. Sentei, ali mesmo, ao lado do círculo marcado pelos meus passos. Passei muito tempo sentada, olhando para o que um dia foi a minha vida e achando aquilo meio cinza. Meio morto. Tudo me parecia assim e, se eu não estava mais rodando sem parar, também não estava seguindo em frente.


E aí você chegou. E me deu a mão. Eu levantei, e vi dentro dos seus olhos escuros todas as cores que o mundo havia perdido. E no seu peito encontrei um coração que batia numa melodia que eu há muito tempo não escutava. Não sei, aliás, se já a tinha escutado. Mas me parecia familiar. Nós caminhamos, e o seu cheiro também parecia familiar e, ao mesmo tempo, inédito. Parecia cheiro de terra molhada depois da chuva. Cheiro de felicidade.


Então, quando você chegou, com essas cores e melodias e esse cheiro, achei que você fosse ele. Mas você não é meu príncipe. Você é melhor. Você é feito de carne e osso, e quando você me beija eu sinto gosto de sangue. Gosto de vida. Quando eu deito a cabeça no seu ombro, sei que posso depositar ali todo o peso que a vida me faz carregar. Ao descansar nesse ombro tão forte pensei, Talvez ele seja um herói.


Então, quando você chegou, com um corpo feito de vida e um ombro de herói, eu entendi. Entendi porque era melhor que você fosse um homem, e não um príncipe. Príncipes são fantasias, assim como deuses. Tudo para eles é possível. Eles não têm coragem porque não sentem medo. Por isso, desde que o mundo é mundo, os heróis são humanos. São homens, e cada um tem o seu calcanhar de Aquiles, lembrando-o do risco, presentificando a morte. É na presença da morte que se vive. O herói, por se saber finito, faz de cada chance uma pequena eternidade. E é por isso que eu não preciso de um príncipe. Porque o amor é para heróis. 

domingo, 22 de janeiro de 2012

Eu sonhava.

Eu sonhava.
Eu fechava os olhos e sonhava, sem que você percebesse.
Sem que você percebesse, eu abria os olhos e sonhava o mesmo sonho.
Eu sonhava o mesmo sonho noite após noite, antes de dormir.
Antes de dormir você me beijava, e me prendia no seu abraço.
Você me prendia no seu abraço e então eu era livre para voar.
Eu era livre para voar, então eu fechava os olhos e pulava.
Eu pulava no abismo do sonho e não caía, eu voava.
Eu voava de olhos abertos, e sonhava.
Eu sonhava o mesmo sonho, no qual você me beijava e me prendia no seu abraço,
sem nunca mais me soltar.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Calo por amor.

Calou-se. Não por ficar sem palavras ou não haver mais nada a dizer, mas porque não há como falar tudo que se diz quando se fala de amor.

Tem frases que escrevo e que me perseguem. É sério: eu as escrevo, penso que me livrei, e, de repente, a frase ressurge como se fosse a primeira vez que... o que? Que a escrevi, que a ouvi, que a pensei? Não sei. Frases assim são como pedaços de real que passam por mim, me cortam, mas que não são minhas. Elas me atravessam e deixam essa marca que não cicatriza nunca, que sangra a cada vez que penso, que ouço, que escrevo.

Calou-se. Não por ficar sem palavras ou não haver mais nada a dizer, mas porque não há como falar tudo que se diz quando se fala de amor.

Como assim calar por não poder falar tudo? É justamente por não conseguir falar tudo que eu falo. Falo, penso, escrevo, defino, grito, tudo tentando dizer o máximo que eu puder. Amor? Aí mesmo é que eu não me calo. Praticamente tudo que eu falo tem a ver com amor. Escrevo amor amor amor amor milhares de vezes tentando alcançar, entender, descobrir, saber o que é esse tal de amor que tanto me perturba.

Calou-se. Não por ficar sem palavras ou não haver mais nada a dizer, mas porque não há como falar tudo que se diz quando se fala de amor.

Curiosamente lembrei agora de um dos primeiros posts do meu blog em que eu reclamava me calar por não saber falar de amor. E respondi à minha reclamação dizendo que o problema é que eu só falava do que sabia e organizava, e que era impossível organizar o amor. Parece-me que, daí em diante, resolvi que ia falar sobre amor até aprender. Então escrevi o amor em prosa e poesia, realidade e fantasia, felicidade e agonia, e ainda assim não entendi. Não entendo, não aprendo, continuo não sabendo.

Calou-se. Não por ficar sem palavras ou não haver mais nada a dizer, mas porque não há como falar tudo que se diz quando se fala de amor.

E então, agora, esse calar. Que depois de tantas repetições (na minha cabeça e na tela do computador) me atinge de outra forma. É um calar diferente do calar por não saber ou do calar por conformismo de que não entenderei jamais o amor. Calei, no dia em que escrevi essa frase pela primeira vez, por me submeter ao fato de que não poderia explicar, e nem dizer tudo sobre o amor. Que mesmo tendo muito a dizer, mesmo tendo todas as palavras existentes e inventadas à minha disposição, ainda assim sobraria a falta. A falta, que é o que faz do amor, amor.

Calo-me agora. Não por ficar sem palavras ou não haver mais nada a dizer, mas porque não há como falar tudo que digo quando amo. E é por isso que amo.


*Texto originalmente publicado aqui.


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Inteligencia e/ou amor

E então eu tenho quatro textos rascunhados há mais de dois meses sem conseguir terminá-los. Volta e meia retorno a eles, apago a metade, escrevo mais um tanto e de repente empaco. O que eles têm em comum além do fato de que eu não consigo colocar-lhes um ponto final? São todos textos "inteligentes". Textos sobre cultura, psicanálise, crônicas sobre o social. E aí hoje li um texto da Inês Pedrosa falando sobre a crença no amor, o segundo que li essa semana abordando o tema, e pensei: que saudade de escrever sobre o amor. Eu sou dessas pessoas que, como a Inês, acredita no amor como outros acreditam em deuses e santos. Eu adoro estar amando, não tenho problemas em me apaixonar e não me retraio por medo de sofrer. Mas, ao contrário do que possa parecer, isso não é uma coisa bonita e altruísta, nem mesmo corajosa. É apenas como as coisas são. Porém, como boa neurótica, eu não gosto de aceitar as coisas como elas são. Então, dentro do meu sintoma, crio uma dicotomia: ou sou inteligente, ou amo. E passo a vida, e perco a vida, buscando equilibrar duas coisas que só são opostas por invenção minha. A verdade é que eu realmente adoro falar de amor, ler sobre o amor, pensar, não entender, me irritar, ficar feliz, tudo ao mesmo tempo e sem ordem alguma. E também adoro ler textos de Lacan dos quais entendo pouquíssimo, passar horas conversando sobre as feridas narcísicas da humanidade ou explicando porque acho que o saber é hoje o deus mais cultuado no mundo. Só que, por algum motivo, é difícil pra mim aceitar que não são duas coisas, ou que até são, mas ambas estão misturadas em mim. E que o que escrevo vai surgir de acordo com o que acontecer na minha vida, e não porque eu decidi que já escrevi muita coisa romântica e está na hora de ser mais intelectual. Até acredito que para outras pessoas funcione assim, mas comigo não. Outra coisa que preciso aceitar: minha escrita, pelo menos aquela que me parece afetar os outros, não é racional. Meus textos "bons" são escritos no ímpeto, com algum trabalho depois, claro, mas o corpo tem que vir todo junto, de uma vez, senão nem adianta continuar. Por isso esse texto. Porque hoje, enquanto eu tentava relaxar para terminar algum dos outros, eu li sobre o amor, e o amor mais uma vez se escreveu, e tive a sensação que precisava escrever isso, preciso parar de lutar contra um pedaço de mim, para que todos os meus pedaços possam existir. Ao tentar eliminar um, elimino a mim, que sou todos esses pedaços desconexos, disformes e desencaixados que, na melhor das hipóteses, se deslocam e me fazem não parar.