quinta-feira, 31 de março de 2011

Direitos iguais X Igualdade.

Dia desses estava escrevendo sobre relacionamentos quando me veio essa formulação, em relação a homens e mulheres: direitos iguais não é a mesma coisa que igualdade. O espaço que as mulheres tanto lutaram - e ainda lutam - para conquistar no mercado de trabalho - só para dar um exemplo-, e na sociedade de forma geral é realmente importantíssimo. Acho um absurdo, por exemplo, pensar que as mulheres ainda ganham menos que os homens ocupando o mesmo cargo. Mas acho que muitas vezes isso é confundido com um ideal inatingível de igualdade que só dificulta as coisas.
Em todas as culturas e sociedades das quais temos alguma notícia a diferença entre homens e mulheres sempre existiu. Em algumas, as mulheres tinham papéis mais importantes, na maioria, isso era algo dos homens, mas, em nenhuma delas, houve igualdade de lugares. Porque isso não é possível. Somos anatomicamente diferentes, somos estruturalmente diferentes em termos de linguagem, nosso modus operandi em relação ao desejo é diferente. Até nossa estrutura de neurose é, no mais das vezes, diferente.
A minha sensação observando, pensando e estudando as relações homem-mulher atualmente é que essa tentativa de igualdade torna tudo muito mais difícil e confuso. Os homens perderam o lugar de provedor e as mulheres sentem-se forçadas a ser quase super humanas para dar conta de tudo sozinhas. Ambos isolam-se cada vez mais, pela dificuldade de viver e desejar estando nesse lugar que é seu mas que ninguém consegue descobrir qual é.
Não escrevo isso querendo dizer que deveríamos voltar ao que era antes, que os homens trabalhem e as mulheres fiquem em casa, nada disso. Acho que o mais importante de todas essas conquistas sociais, da igualdade de direitos, é que as mulheres possam ocupar lugares diferentes - e, conseqüentemente, os homens também. Mas ambos tem de se submeter ao desejo que é para além deles. Há que se ocupar lugares, não importa quais, mas que cada um tenha o seu. Pois só ocupando o lugar que é nosso e, a partir desse lugar, desejando, é que é possível viver em uma sociedade com direitos iguais.

terça-feira, 29 de março de 2011

Tempo em poesia


A pedra desfez-se em grãos
de areia, e a ampulheta, cheia,
corria contra o tempo - em vão.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Para não me perder, perco.

O equilíbrio é a minha prisão. Cada atitude tomada deve ser exaustivamente analisada antes. Devo agir assim? Será que é o melhor a ser feito? Talvez devesse pensar um pouco mais... E nisso eu paro. Paralisada permaneço, no mesmo lugar, dentro de mim, enquanto o tempo segue do lado de fora. Paro na tentativa de organizar e não me perder. Mas sem perda, não há ganho. Presa dentro de mim, perco momentos. Perco a chance de ouvir a voz ao ligar às duas da manhã porque não consigo dormir, ou o sorriso que poderia receber se não demorasse tanto a me declarar. Perco assim meu desejo, escondo-o de mim. Tentando não me perder, não consigo me encontrar.

Mas, às vezes, me distraio, e aí uma ou outra palavra desequilibrada escapa. Rapidamente, então, tento organizar e classificar: digo que é loucura, que foi exagero, peço desculpas, e até esqueço o que falei. Tudo para não admitir que aquela sou eu. Que os sentimentos e as palavras me escapam, que são eles que dizem de mim e não o contrário. Quero esquecer que sou humana: enlouqueço, sinto ciúmes, medo, raiva, dor... Mas também sou meiga, sonhadora, e perdôo sem reservas quem tenho vontade. Sou aquela que se joga porque em algum lugar sabe que a felicidade só é vivida por quem vive. E sou, ainda, outra, que acha que depender é ser frágil, e vive apavorada com a possibilidade de que a vida e a morte levem, mais uma vez, quem lhe é imprescindível.

Crio, então, um campo de batalha, onde devo lutar comigo mesma pelo controle de mim. Mas nenhum lado ganha definitivamente, e quem perde a vida sou eu. Porque a luta real, a mais importante, é a de abrir mão da definição e do controle. É perder as certezas eternas e poder ser ao mesmo tempo aquela que grita e aquela que cala, dependendo do momento. E ser aquela que não sei quem sou, ou quem é, e que precisa do outro para dizê-la.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Imprevisível, indefinível, inesquecível.

Confesso que tenho um respeito pelas palavras que chega à margem do medo. As palavras que digo, quando as digo, perco-as, perco a posse imaginária que tenho sobre elas. Então muitas vezes calo. Por medo de soltar palavras e ter que aceitar que elas me atravessam, me marcam, passam por mim, mas não as retenho, seu destino é outro - o outro. É no ouvido do outro que minhas palavras ganham voz.

Quando as palavras saem de minha boca - ou dos meus dedos – para o mundo, seu destino é sempre imprevisível. O que você entende quando eu digo: imprevisível? Foi realmente isso que eu quis dizer? Certamente não. Há uma dissimetria inevitável, entre a intenção que tem aquele que diz e o significado dado por aquele que escuta, que nunca desaparece.

Essa dissimetria me angustia e, por isso, tento definir tudo, sempre. Adjetivos e advérbios em profusão, tentando dar conta daquilo que ouço, leio, penso, tentando amarrar as palavras para que elas não saiam por aí tomando outros rumos, novos caminhos, diferentes daquele que luto tanto para estabelecer.

Mas, por mais que eu tente, a vida não obedece. Quando menos espero sou tomada por algo que não consigo apreender ou definir. Todos os adjetivos e verbos, de todas as línguas do mundo, não são suficientes. Pode ser um encontro, uma obra de arte, as palavras de um outro, o amor. Seja o que for, nesses momentos agradeço por não ser tão eficiente em minhas amarrações. Porque são os momentos em que estou mais viva. Momentos imprevisíveis, indefiníveis, e, por isso mesmo, inesquecíveis.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O amor é assim mesmo, dizem

"Ela amava o jornal inteiro que ele lia, o cachorro dele que latia, a toalha no chão do banheiro, o sapato no meio da sala, o sal de fruta, a pressa, o amigo chato, a noite besta, o dia-a-dia, mesmo quando ele estava mal humorado, deprimido, insuportável, impossível, mesmo quando ele não estava, nem telefonava, mesmo quando ele se atrasava, não vinha, faltava, não ouvia, mesmo assim ela amava, fazer o quê? O amor é assim mesmo, dizem. "

Adriana Falcão, "O homem que só tinha certezas e outras crônicas".

quinta-feira, 17 de março de 2011

Clara: labirinto


(...) então André perguntou no seu tom de voz que é quase música: Você gosta de ser assim tão bonita? Clara enrubesceu e sorriu, envergonhada. Olharam-se em silêncio, um silêncio feito de olhos sorridentes, esperança e sonhos. E, entre sorrisos e sonhos, André tocou o rosto de Clara. E a beijou.
E foi aí que tudo acabou e começou, no mesmo instante. Todas as certezas, planos, previsões e estudos de Clara estavam condenados. Ela sabia que nada mais daquilo importava. Ela queria surpresas. Queria desejar sem saber o porquê, sem nem saber o que queria até que fosse tarde demais e ela já o tivesse. Ela não queria mais encontrar a saída, alcançá-la em uma única curta travessia – sem desvios ou obstáculos. Ergueu as mãos e deixou o vento levar o mapa. Desistira do caminho mais curto. Queria continuar perdida enquanto pudesse.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Doces Memórias

(...) continuamos andando, lado a lado, até um trecho que tinha uma carcaça de barco no mar, você se lembra? Eu lembro porque foi aí que paramos, para ver o tal barco, e você me tocou. Você só encostou, segurando muito de leve o meu braço. Mas bastou isso. Em um segundo fui completamente tomada pelo desejo e o pânico que sempre o acompanha. Você sentou-se na mureta. E eu, de repente tão nervosa, fiquei em pé. Falamos de poesia. Eu disse que “Ou Isto Ou Aquilo” era meu livro favorito na infância. Você recitou um trecho. Alguma coisa muito estranha estava acontecendo. Quais as chances de sair com um homem capaz de recitar Cecília Meireles? E, mais, a tua voz. Você recitava com aquela voz, e me olhava com aquele olhar. Pensei que fosse chorar, ou rir, alguma coisa ia acontecer. Então você me puxou, me abraçou, e me beijou. E me beijou. E segurou de leve meu cabelo, daquele jeito que você hoje sabe tão bem que me desmancha inteira. E era tudo bom. O beijo, a mão no cabelo, a voz no ouvido, os olhos nos olhos. Eu teria ido com você pra onde quer que fosse naquele momento. Mas nunca imaginaria que acabaríamos na praia que tantas vezes fui quando criança. Um lugar que me era cheio de lembranças infantis, de família, daquela felicidade doce e plena que experimentamos algumas vezes na infância e ficam guardadas para sempre em nós. Ao levar-me ali você, sem saber, ativou algumas das minhas mais doces memórias. E eu, sem saber, deixei que você se alojasse junto a elas.

terça-feira, 15 de março de 2011

Resenha: "Pedro Páramo", de Juan Rulfo.

Pedro Páramo é um livro tão lindo, tão incrível, que fico até com medo de escrever sobre ele e estragar a maestria de Juan Rulfo. Escrevi maestria porque o livro inteiro me pareceu uma música, as palavras todas no exato lugar, o ritmo perfeito. Mas é uma música diferente, feita de silêncio, de deserto, de ar parado. E aí é que residiu meu maior encantamento com o livro. Porque Pedro Páramo é um livro árido. Em certos momentos quase sentia o gosto da terra na boca, o barulho ensurdecedor do silêncio. Rulfo fala de solidão, morte, desgraça e tristeza, mas em nenhum momento o livro torna-se dramático ou pesado, pelo contrário. Parece que quanto mais ele falava de morte (ou através dos mortos) mais eu escutava vida. Quanto mais ele falava de maldade, mais eu escutava o que há de humano em cada um dos personagens.

Além disso, toda a narrativa não linear, a construção da história e o realismo irreal só tornaram o livro ainda mais encantador.

E para não me perder em palavras desnecessárias e seguir o estilo de Rulfo - onde menos sempre é mais - vou terminar dizendo apenas isso: leiam.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Resenha: "A Trégua", Mario Benedetti


Sabe aquele livro que você lê e sabe, ainda durante a leitura, que não será a mesma pessoa depois de ter lido aquilo? "A Trégua" foi um desses livros, um dos que chamo "livros da minha vida".

Pra já começar com o coração dando aquela parada centesimal em que é como se pulasse uma batida, a primeira data do diário de Martín é a data do meu aniversário. Eu já comecei então o livro com uma certa boa vontade, um querer-gostar. Ainda nas 10 primeiras páginas, e estando já quase conquistada pela linguagem de Benedetti, ele escreve:"Há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e em seguida olhar o relógio." Aí ele me ganhou de vez. Vivi tantas vezes essa situação, esse desconforto provocado ao se falar de morte, vi tantas pessoas olharem o relógio, ouvirem o telefone, lembrarem-se de um compromisso inadiável para o qual já estão atrasadas. É ou isso, ou o silêncio. E é assim mesmo, para a morte não há palavras. As que são usadas nunca são suficientes, por mais que se tente. E Benedetti tratou disso com uma sensibilidade única. Esse falar da morte sem tentar esgotá-la, falar também da vida e do amor sempre deixando presente uma dimensão em que sabe-se que as palavras não esgotam o que se vive.

"Comemos. Conversamos. Rimos. Fizemos amor. Tudo correu tão bem que não vale a pena escrevê-lo."
"Tudo passou tão rápido, foi tão natural, foi tão feliz, que não pude tomar nem uma só anotação mental. Quando se está no próprio foco da vida é impossível refletir."

E ainda assim, ainda dizendo isso, Benedetti escreve através de Martín cenas belíssimas. Declarações que renovam a crença no amor, momentos rotineiros que deixam gosto de felicidade, e uma simples palavra que derruba todo o castelo.
Tenho uma certa tendência à melancolia, essa coisa meio triste, meio bela, que dói mas vale a pena, e "A Trégua" é assim. Doído, triste, lindo, vivo.

"Nunca havia sido tão plenamente feliz como nesse momento, mas tinha a sensação dilacerante de que nunca mais voltaria a sê-lo, ao menos nesse grau, com essa intensidade. O cume é assim, claro que é assim. Além disso, estou certo de que o cume dura apenas um segundo, um breve segundo, uma centelha instantânea e sem direito à prorrogação."

E o que restou do livro em mim foi isso: essa centelha que acende, consome-se e desaparece no tempo de um instante, esse breve momento de trégua que dura apenas um segundo no relógio mas que continua acontecendo em nós até nosso apagamento final.

domingo, 13 de março de 2011

Tropeço


Percorria rápido o caminho,
sem desfrutar a jornada.
Só quando tropeçou,
e se desviou
do seu destino
foi que viu, enfim,
a beleza da estrada.

sábado, 12 de março de 2011

O amor no fundo do poço.


"procura-me por todos os lados, procura-me
às escuras por todos os lados, estarei
algures, fremindo, criando bichos entre
os braços e as pernas, aguardando que
me salves. Só assim te amarei, se souberes
descortinar o caminho para o lugar onde
me escondo, com medo, com fantasmas,
feito para ser amado apenas por quem
avistando-me no fundo do poço, me
puder querer sem garantia de outra condição"

Valter Hugo Mãe, "Exercício do Bom Amor".

*A ilustração é do Esgar, que ilustrou todos os poemas do Valter Hugo nesse livro.


sexta-feira, 11 de março de 2011

O amor não se faz.

"Sentia uma vontade violenta de me desmoronar em ti. Não, não era fazer amor. Fazer amor não existe, porra, o amor não se faz. O amor desaba sobre nós, já feito, não o controlamos - por isso o sistema se cansa tanto a substituí-lo pelo sexo, coisa gráfica, aparentemente moldável. Também não era foder, fornicar, copular - essas palavras violentas com que tentamos rebentar o amor. Como se fosse possível. Como se o amor não fosse exatamente essa fornicação metafísica que não nos diz respeito - sofremos-lhe apenas os estilhaços, que nos roubam vida e vontade. Eu queria oferecer-te o meu corpo para que o absorvesses no teu. Para que me fizesses desaparecer nos teus ossos."

Inês Pedrosa, "Fazes-me falta".

quinta-feira, 10 de março de 2011

Momentos que não nos pertencem, mas nos constituem.

Encontraram-se na escada do prédio. Os dias que haviam passado afastados pareciam empurrá-los um para dentro do outro.
Sorriam - e o mundo inteiro cabia naquele sorriso. Qualquer palavra seria pouco perto daquele sorriso. Ainda assim tentaram falar:
Nossa, você está bonita demais, disse ele.
Nossa, quanta saudade, disse ela.
Beijaram-se brevemente e continuaram a subir as escadas, trocando palavras desnecessárias até chegar ao apartamento.
Entraram. A porta, enfim, fechada, e o sorriso, ainda, aberto.
Então o beijo.
Se no sorriso cabia o mundo, naquele beijo cabiam apenas os dois.
Mas "apenas" os dois não era pouco, pelo contrário. Conviviam naquele beijo todos os encontros e desencontros, concordâncias e desentendimentos, partidas e retornos, risos e lágrimas... Ali partilhavam tudo e nada, porque estavam ali inteiros - ou com todos os seus pedaços - e nada mais importava. Apenas viveram e entregaram-se um ao outro e aquilo que os movia para além de seu controle. Amaram.

Anos depois ela lembraria-se dessa cena com o carinho que lembramos daqueles momentos que não nos pertencem, mas nos constituem, tornam-se parte de nós, parte a ser partilhada novamente quando, se o acaso quiser e a razão permitir, enfim, nos distrairmos.

Guardar

"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela,
isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro,
do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar. "

Antonio Cícero, "Guardar".

"porque quiseram ser, eles que eram."

"Por Não Estarem Distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.
No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.
Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.
Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

Clarice Lispector, "A descoberta do mundo".

quarta-feira, 9 de março de 2011

Resenha: "Rakushisha"


Guia de viagem
do outro e de si mesmo
numa só embalagem.

Esse rascunho de HaiKai é uma tentativa de homenagear a Adriana Lisboa e esse livro que na verdade é um longo poema que fala de viagem, amor, acaso e tudo mais de importante que existe na vida.

Logo no começo do livro Adriana fala sobre o andar: um pé depois do outro. E assim segui com ela todos os capítulos, lendo, vivendo e sentindo cada palavra escrita, uma após a outra. E terminei a leitura pensando: essa simplicidade do "um pé depois do outro" é algo que me custa tanto. Sinto uma enorme dificuldade em me deixar levar sem saber aonde o caminho me levará, e em aceitar que é o caminho, e não o destino final, o que realmente importa.
A viagem de Celina e Haruki ao Japão é, na verdade, como aliás toda viagem, uma jornada para dentro de si. O caminho dos dois se cruza e a partir daí tudo acontece em "quase-sustos, um grande por acaso com cacoetes de gestos definitivos" como Adriana escreve tão bem. E a sensação que me ficou foi que tudo na vida é assim. Nós é que não suportamos, e tentamos, sempre, remover o acaso e a fragilidade de cada decisão tomada, pensando que assim construímos um caminho mais seguro. Mas não há segurança; o destino final muda à cada passo dado. E, se é assim, só nos resta caminhar, um pé depois do outro, e apreciar a paisagem.

terça-feira, 8 de março de 2011

Vento, me leva?

A dor, que é como afogar-se, e ao mesmo tempo como se o corpo todo estivesse em chamas, mas nem a água apaga o fogo e nem o fogo seca a água. Só o ar vai fugindo do peito, mais e mais, até não sobrar nenhum respiro, nenhum suspiro. Piro, fogo, que arde os olhos cheios de tanta água. E a dor não passa, devia passar, tinha que escoar, se esvair, queda d´àgua, mas sou eu que caio. Eu que estou me esvaindo, saindo de mim, o coração destroçado, os pedaços náufragos nesse mar revolto que nasceu no meu peito. Perdi o comando. E agora, apenas tripulante desse navio fantasma, sigo até a próxima ilha. Vou aonde o vento me levar.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Um pé depois do outro.

"Era preciso reconhecer e reverenciar esses momentos. Eles eram rápidos e raros. Momentos em que sem nenhum motivo aparente tudo parecia entrar nos eixos, ajustar-se, encaixar-se. Acabavam-se as perguntas e a necessidade delas. Acabavam-se a pressa, o ter aonde ir, o vir de algum lugar. Simplesmente as solas dos sapatos batiam na calçada úmida e pronto, o mundo prescindia de outros significados.
Um pé depois do outro."

Adriana Lisboa, "Rakushisha".

domingo, 6 de março de 2011

Fantasia

Minha melhor fantasia:
cobrir meu corpo
com a tua poesia.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Palavras não dizem tudo.

"Se o acto existe, também deveria existir a palavra, As que temos encontram-se nos dicionários, Todo os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisaríamos para nos entendermos uns aos outros, Por exemplo, Por exemplo, não sei que palavra poderia expressar agora a sobreposição e confusão de sentimentos que noto dentro de mim neste instante, Sentimentos, em relação a quê, Não a quê, a quem."

José Saramago, "O Homem Duplicado".

quinta-feira, 3 de março de 2011

Fala alguma coisa!

- Só vim aqui para avisar que essa é a minha última sessão.

Silêncio.

- É sério, não vou mais voltar. Não adianta nada. Aliás, não só não adianta como atrapalha. Desde que comecei a vir aqui tenho enlouquecido mais e mais.

Silêncio.

- Tudo bem, se você falasse alguma coisa diria que não estou de fato mais louca, só que agora me dou conta de coisas que antes não dava, blá blá blá. Mas não importa, o fato é que me sinto mais louca.

Silêncio.

- Vê, até isso é estranho, “sinto”, eu não sou uma pessoa de sentir. Eu sei, eu penso, eu entendo. Não gosto desse monte de sensações e sentimentos me atrapalhando. É horrível isso, esse não saber, não conseguir entender. Não consigo planejar mais nada. Nem o que vou fazer aqui, uma simples sessão de poucos minutos. Tinha decidido exatamente o que dizer, estava muito claro que não deveria voltar aqui. Afinal, viria por que, pra enlouquecer mais? Mas agora já estou em dúvida, será que não devo ficar pelo menos até organizar um pouco esses sentimentos todos?

Silêncio.

- E você nem me ajuda, não me diz o que fazer, nunca! Fala alguma coisa!

- Vou te esperar na quinta-feira, no seu horário de sempre.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Mania de Explicação

A Adriana Falcão escreveu um livro chamado "Mania de Explicação" que, pra quem não conhece, é um livro "infantil" no qual ela explica várias palavras de forma lúdica e póetica como, por exemplo: "Solidão é uma ilha com saudade de barco."

Quando li fiquei completamente apaixonada e desde então escrevo, de brincadeira, algumas dessas frases para postar no twitter, foi como comecei a escrever lá, aliás. Reuni algumas e vou postar todas juntas em homenagem a Adriana e esse livro genial que tanto me inspiram.


Beijo é uma flor plantada pelos lábios.
Desejo é vontade de escrever poesia com o corpo.
Amigo é aquele que te abraça com palavras.
Paixão é um jogo que ganha quem se perde.
Saudade é uma página de diário arrancada tentando se reescrever.
Saudade é desejar que a flor renasça em botão.
Desencanto é quando a voz que era música vira ruído
Esperança é a borracha que usamos para apagar o medo.
Destempero é apimentar demais a vida.
Renúncia é um adeus que queria ser oi.
Resignação é parar no sinal vermelho no caminho do desejo.
Desejo é uma rede de alta voltagem que liga todas as células do seu corpo.
Desconcerto é quando o coração sai do ritmo.
Tristeza é um rio que inunda seu peito e só diminui a pressão quando escoa pelos olhos.

*Quem não leu o da Adriana recomendo muito!!! Para crianças e adultos!

HaiKai


Ao destino mais distante
embarcamos, e em sonhos caminhamos
deslumbrados, delirantes.

terça-feira, 1 de março de 2011

Espera.

"Eu não dou conselhos a você. Eu simplesmente - eu - eu acho que o que faço mesmo é esperar. (...) às vezes me parece que estou perdendo tempo, às vezes parece que pelo contrário, não há modo mais perfeito, embora inquieto, de usar o tempo: o de te esperar."

Clarice Lispector, "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres".

Resenha: "A Paixão Segundo G.H."


Uma mulher mata uma barata. Dito assim, fica difícil acreditar que esse livro possa ser bom. Realmente, bom não é o adjetivo que usaria para "A paixão segundo G.H.". Eu diria - estou dizendo, aliás - que é um livro intenso, cortante, angustiante, demasiadamente lindo e absolutamente aterrador. Tenho sempre muita dificuldade em falar sobre leituras como essa, leituras que me tomam e me transformam, das quais não consigo apreender nenhum conceito ou saber, mas apenas vivo-as como se fossem parte de mim. E sobre "A paixão segundo G.H." o que tenho a dizer é que foi uma leitura mortificante. Morri com a barata que G.H. esmagou, e voltei à vida com as palavras da mesma G.H. - mas minha vida nunca mais foi a mesma.

Citando Clarice (que diz de mim melhor do que eu jamais poderei fazer): "Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável."

Leiam. Deixem partes de si pelo caminho. É preciso morrer um pouco para, então, viver.